quarta-feira, 6 de março de 2024

Elogio das mesas de voto e do dia de reflexão

É preciso dizer e repetir que um dos grandes êxitos do regime democrático em que

vivemos é o facto de o resultado das eleições que realizamos periodicamente não ser objecto

de discussão. O que se discute é o significado desse resultado. Uns consideram-no muito bom

(vitória, nos casos mais claros) outros, menos bom, mas sempre aceitando os resultados

anunciados e publicados.

Nunca essa lisura do acto eleitoral aconteceu na história do nosso país desde que as

eleições se começaram a fazer em mesas eleitorais espalhadas pelo país, há pouco mais de 200

anos. A regra era a de quem perdia logo proclamava que houve fraude, que os resultados

foram viciados e bem sabemos que tal sucedia, desde logo na elaboração dos cadernos

eleitorais e depois, nas mesas de voto.

Em Portugal, desde 1975, as eleições são principalmente da responsabilidade de uma

entidade independente - a Comissão Nacional de Eleições (CNE) - e as mesas de voto são

organizadas de modo a que delas façam parte pessoas idóneas e o acto eleitoral seja

devidamente fiscalizado por representantes dos partidos concorrentes. Certamente nem tudo

é perfeito, existem problemas, mas há confiança nos resultados anunciados pelas mesas e

depois publicados nos lugares próprios.

Isso deve ser motivo de orgulho para todos nós. Merecem inegável elogio os membros

das mesas de voto, que estão ali um dia inteiro, a troco de uma pequena compensação

financeira (senha). Manter este nível não é fácil e, no dia em que não confiarmos nas mesas de

voto, a honestidade cívica desaparece e com ela a democracia.

A boa preparação do acto eleitoral deve também muito ao dia de reflexão previsto na

lei. A acalmia do dia anterior, em que a campanha eleitoral já terminou, permite preparar as

mesas de voto e o dia de eleições com a serenidade necessária.

Acresce que os candidatos, por sua vez, têm um dia de descanso para no dia seguinte

poderem falar mais ponderadamente. E a que título se menospreza o direito dos cidadãos de

pensarem sobre a decisão de voto num ambiente calmo que esse dia proporciona?

E, a este propósito, não se esqueça de votar. O boletim de voto permite todas as suas

preferências, mesmo quando nenhuma das listas lhe agradar. Para isso, há o voto branco ou o

voto nulo. O voto nulo permite até, se assim se entender, riscar todo o boletim ou escrever

nele o que se pensa.

O dia de voto é um dia de festa democrática em que as pessoas se encontram e o voto

presencial tem uma transparência que nenhum outro modo de votar possui.

(Publicado no JN de 6 de março de 2024)

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

A democracia não é um regime político natural

 A democracia não é um regime político natural. O natural nas sociedades humanas, mesmo quando integradas em Estados, é a dominação de uma parte do povo por outra. Normalmente, é uma minoria a tomar o poder e a submeter a maioria ao seu jugo.

A democracia tal como a entendemos hoje, baseada na igualdade de todos os cidadãos perante a lei, no respeito pelos direitos fundamentais de cada um deles e, depois, na vontade da maioria,  é uma conquista civilizacional relativamente recente.

Para chegar até aqui foi preciso passar por muitas fases, constituindo a mais próxima no tempo e no espaço europeus a superação da divisão da sociedade em classes ( nobreza, clero e povo), cabendo às duas primeiras, largamente minoritárias, o poder de mandar, tendo na cúpula um monarca  que se foi tornando cada vez mais poderoso, ao ponto de estabelecer um regime absoluto.

               A Revolução francesa trouxe uma modificação profunda com a abolição dos privilégios da nobreza e do clero, a introdução do voto por cabeça e não por classes, o acolhimento da separação dos poderes e a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas foi preciso ainda percorrer muito caminho para estender o sufrágio a todos os homens (e não apenas aqueles possuidores de mais meios de fortuna) e às mulheres, tendo hoje direito de voto todos os cidadãos que chegam a maioridade.

A democracia está em constante aperfeiçoamento, pois não se basta com eleições livres e periódicas, precisando de concretizar os direitos fundamentais da pessoa para alcançar uma vida digna o que implica não só a liberdade de pensamento e opinião, mas também nomeadamente  o acesso à educação, à saúde, à justiça e à habitação condigna.

Isso implica uma cada vez maior igualdade entre os cidadãos, pois concentrando-se a riqueza nas mãos de alguns, outros ficam pobres e sem acesso aos direitos fundamentais. O combate às desigualdades é uma exigência permanente da democracia.

A democracia pode adoecer e morrer pela não concretização dos direitos fundamentais das pessoas e pela descrença no valor da dignidade da pessoa. Pode morrer também pela difusão da ideia de que o poder pertence a quem dele se apodera e não ao povo, constituído pelos  cidadãos e cidadãs.

A democracia só se mantem com democratas. O democrata é aquele que respeita o outro na sua liberdade e o considera um seu igual. O grande problema dos nossos dias é que alguns se julgam superiores aos outros e os querem dominar, impondo as suas ideias, à força, se necessário. Para estes, as eleições livres são apenas um instrumento, para uma vez alcançado o poder, acabar com elas ou  fazer um arremedo de eleições  e destruir os pilares da democracia.

Há muito caminho a andar para educar para a democracia e esse caminho deve começar na família, na escola e continuar na vida adulta.

Que bela escola são, por outro lado, os documentos que constituem o ensino actual da Igreja neste domínio!

(Publicado no DM de 15.2.24)

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Em Nome da Democracia: Regionalização fora da Constituição


“É mesmo difícil conceber regime constitucional mais convidativo a uma rejeição de qualquer divisão regional do Continente.”  (Marcelo Rebelo de Sousa – Lições de Direito Administrativo, Vol. I, Lisboa, 1999, p. 401)

Em tempo de eleições importa revisitar a questão da criação de regiões administrativas. Como sabemos em Portugal há, com bons argumentos, adeptos e adversários da regionalização e o cumprimento exemplar das regras democráticas próprias de um Estado de Direito obrigaria a que uns e outros lutassem pelas suas posições em condições de igualdade.

Assim, os adversários não teriam neste momento nada a fazer de essencial, pois a regionalização do continente não existe. Os adeptos esses, pelo contrário, teriam de lutar se quisessem regionalizar e, assim, teriam de apresentar oportunamente para aprovação na Assembleia da República uma lei de criação de regiões no continente acompanhada de um mapa devidamente elaborado.

Uma vez aprovada essa lei, os seus adversários deveriam ter a possibilidade de a combater e exigir um referendo para que os cidadãos se pronunciassem. Se a opinião dos cidadãos fosse favorável, a lei avançaria e seria executada. Não importaria para o efeito a percentagem de participação no referendo. O que importaria seria o número de votos a favor e contra, só avançando se o número de votos a favor fosse superior aos votos contra. Foi assim que aconteceu nos referendos que tivemos sobre o aborto e não se vê razões para que o referendo sobre a regionalização mereça um tratamento mais exigente.

Procedendo assim, as regras da democracia seriam cumpridas e mais ainda uma lei posterior poderia modificar ou extinguir as regiões. Ora estas regras claras da democracia não vigoram actualmente em Portugal. No nosso país a Constituição introduziu um regime incongruente, agravado em 1997, que por um lado obriga a regionalizar e, por outro lado, coloca sérias dificuldades à concretização da instituição de regiões.

Obriga a regionalizar, pois o artigo 236.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) determina desde sempre que, no continente, “as autarquias locais  são as freguesias, os municípios e as regiões administrativas”. O problema não se coloca nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, onde existem desde 1976 regiões autónomas.

Por via desta obrigação contida no n.º 1, a Constituição só será cumprida quando houver regiões administrativas. No entanto, a mesma, para além da natural aprovação na Assembleia da República de uma lei de criação de regiões administrativas oferece aos adversários da mesma um referendo obrigatório, dando-lhes, desse modo, a possibilidade de travar a lei sem necessidade  de terem de trabalhar para o convocar como seria razoável. Mas a Constituição vai mais longe e não se contenta com um resultado favorável à regionalização obtido nesse referendo. Ela coloca um conjunto de requisitos que só tem uma finalidade: dificultar a criação de regiões e os artigos 255.º e 256.º da  CRP bem o evidenciam. Eles exigem não só uma lei de criação simultânea das regiões administrativas definindo os “respectivos poderes, a composição, a competência e o funcionamento dos seus órgãos” (artigo 255.º), mas também um referendo com duas perguntas, uma de alcance nacional e outra regional e ainda, segundo a letra da lei sobre referendos de âmbito nacional ( artigo 251.º,  n.º 2,  da Lei n.º 15-A/98, de 3 de Abril),  a participação de 50% dos eleitores, o que nunca aconteceu num referendo nacional no nosso país.

Bem pode dizer-se que a Constituição prejudica fortemente os adeptos da regionalização e favorece os adversários. A Constituição não é neutra nesta matéria e tem a obrigação de ser em nome da democracia. Basta que não obrigue, nem proíba a criação de regiões!

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Assembleias Municipais: o seu papel e as senhas de presença

As assembleias municipais são o órgão máximo do município. Dito isto, muito dos leitores não acreditam e com boas razões, dizendo que órgão máximo do município é o presidente da câmara e que  só não vê isso, quem não quer.

Respondo, dizendo que têm razão, que na prática o órgão máximo do município é o presidente da câmara, mas acrescento que assim é porque a assembleia tal permite. O presidente da câmara e com ele a câmara nada de importante poderão fazer e mandar se a assembleia não aprovar o orçamento, se não autorizar a realização de empréstimos vultuosos, contratos de certo montante , vendas de património e tantas outras coisas  que, no geral, são  as mais importantes do município.

E isto é assim porque num Estado de Direito o presidente da câmara, que é  o chefe do poder executivo, não faz, nem pode fazer,  o que bem entende, tendo de obter o apoio do parlamento local que é a assembleia municipal.

Bem me podem dizer que isso é apenas uma formalidade tal como quem vai ao notário para obter um título necessário para  formalizar um contrato de compra e venda que já está feito e que o notário apenas regista,  entregando  o documento respectivo,  não podendo alterar o conteúdo do contrato,  desde que não viole a lei.

É verdade que a assembleia municipal se comporta por vezes e em muitos municípios quase como um notário, fazendo a vontade do presidente, mas não tem de agir assim, não tem de ser um mero notário.

Uma assembleia que se dê ao respeito analisa cuidadosamente , por exemplo, uma proposta apresentada pela câmara de contrato de empréstimo ou de aquisição de um prédio,   vê se está bem feita e se é a que  melhor serve  o município e assim sendo, aprova-a; mas também a pode rejeitar por considerar, por exemplo, que a proposta não é oportuna ou não é a mais conveniente para o município.  Este poder ninguém o pode tirar à assembleia.

Repare-se que não estou aqui a dizer que a assembleia deve estar contra a câmara e rejeitar sempre as propostas que esta apresente. De nenhum modo. O que estou a dizer é  que o poder está repartido entre a câmara e a assembleia e que os dois órgãos devem respeitar-se mutuamente. Mais acrescento  que, para o bom governo do município,  os dois órgãos devem estar,  em regra,  de acordo. Em regra, mas não necessariamente sempre.

Uma assembleia que se preze constituída por membros qualificados com opiniões diferentes, resultantes dos grupos municipais que a compõem,  pode e deve ajudar a câmara a governar melhor, elaborando boas propostas e  estando atenta às críticas que, porventura, lhe sejam feitas. Uma assembleia municipal bem constituída é elemento importante para o bom governo do município.

É neste contexto que deve ser vista a recente alteração à lei do estatuto dos eleitos locais que veio alargar o direito dos membros da assembleia a senhas de presença. Os membros da assembleia municipal não exercem como sabemos as suas funções a tempo inteiro ou meio tempo. Não recebem um vencimento mensal. Recebem apenas senhas de presença que variam entre 60 e 80 euros por cada sessão da assembleia em que participem.

Estas senhas de presença são merecidas porque os membros da assembleia (deputados) devem estudar os assuntos que vão ser debatidos nas reuniões, devem estar atentos aos debates das propostas e votar no momento próprio. Isso implica tempo tirado a outras actividades e a senha  é uma compensação por esse esforço e podemos dizer mesmo que tem um montante modesto.

Até agora essa senha só  era devida, num certo entendimento, errado a meu ver, mas entendimento dominante com base numa interpretação  restritiva da lei vigente,  por cada sessão ordinária ou extraordinária da assembleia por muito extensa que ela fosse e mesmo que houvesse necessidade de a desdobrar em várias reuniões e o mesmo se diga da participação dos membros nas reuniões das comissões existentes na organização da assembleia.

Porém a partir deste ano e por um enxerto feito no Orçamento do Estado para 2024 o artigo 10.º, nº 1,  da Lei n.º 29/87, de 30 de Junho (Estatuto dos Eleitos Locais) passou a ter a seguinte redacção que alarga o direito a senhas de presença:

 

 “Os eleitos locais que não se encontrem em regime de permanência ou de meio tempo têm direito a uma senha de presença por cada reunião das sessões ordinárias ou extraordinárias do respetivo órgão e das comissões a que compareçam e participem”.

        É uma alteração  de aplaudir e que se aplica também com as devidas adaptações ao parlamento das freguesias.

(Publicado no DM em 1.2.24)



sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Partido Socialista : uma oportunidade perdida


Devemos ser exigentes com os partidos e mais especialmente com os partidos mais representativos, pois eles têm um poder enorme o que implica uma igual responsabilidade. A eles compete, por exemplo, não só escolher o seu líder (presidente ou secretário geral)  que depois de realizadas as eleições para a Assembleia da República  pode ser o primeiro-ministro,  mas também  ter uma particular influência na escolha dos respectivos  deputados.

Ora, a escolha do líder num partido aberto, ligado aos cidadãos e não fechado apenas aos seus militantes implica dar também a palavra àqueles que não sendo militantes, fazem com o seu voto que esses partidos sejam grandes.

O Partido Socialista já demonstrou consideração por essa abertura e António José Seguro  levou à prática essa participação dos cidadãos. É verdade que o caminho que  abriu -  e que lhe valeu a saída da vida política, mas não a admiração que bem merece - não teve seguimento e é pena.

Não se diga que essa participação é complicada e precisa de muito tempo para ser levada à prática.  É fácil, quando se quer,  dar a palavra aos cidadãos que, não sendo militantes, são simpatizantes e votantes de um partido.

Damos um exemplo de um modo de proceder e outros haveria também fáceis. Oito dias antes das eleições internas, num ou dois dias a agendar,  os interessados dirigir-se-iam à sede do PS concelhia ou distrital e seriam atendidos no horário afixado e  por ordem de chegada por uma mesa composta por representantes dos candidatos a líder e por outro militante por eles escolhido, manifestando  a sua vontade de se inscreverem para votar.

A inscrição seria aceite, excepto se houvesse dúvidas fundadas quanto à intenção do cidadão em causa, se não estivesse inscrito no recenseamento eleitoral ou se não residisse na área da secção em causa. Para obviar a esses ou outros  problemas o interessado far-se-ia acompanhar de documento de identificação e se necessário de um militante ou dois que atestassem a sua idoneidade e vontade de votar. Ele seria inscrito no recenseamento da  secção e votaria  juntamente com os militantes no dia próprio da eleição em caderno devidamente elaborado.

Todos conhecemos a objecção de muitos militantes de partidos a esta abertura que poderia e deveria existir também para outros partidos. Então nós é que trabalhamos no partido e vêm estes agora “de fora” votar? Porém,  são os “de fora” que fazem grandes os partidos neles confiando e a confiança deve ser recíproca. É muito melhor para um líder ser eleito por um  número muito mais elevado de número de votos do que os que resultariam de uma votação fechada.

Os cidadãos não militantes por razões várias, mas que não se importam de manifestar da sua simpatia política deveriam não só merecer toda a atenção como lutar por uma participação mais activa no partido de que estão próximos. E se isto não serviu para as eleições no PS de 15 e 16 de Dezembro de 2023 bem poderá servir para próximas escolhas de candidatos a deputados e a presidentes de câmara apresentados pelos diversos partidos em próximas eleições, mesmo quando haja um único candidato.

Os partidos democráticos não devem ter medo de abrir as portas aos cidadãos. Devem  fomentar a participação democrática.

(Público ed. electrónica - 15-12-23)

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Direito à habitação: a chave de leitura e a concretização

 “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Julgo que é difícil que a grande maioria dos portugueses, poderemos dizer a quase totalidade, não se reveja neste preceito que é o artigo primeiro da nossa Constituição.

Está lá tudo o que de mais importante queremos para o nosso país: uma sociedade livre, justa e solidária fundada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular ou seja na vontade da maioria dos cidadãos.

E não é por acaso que a Constituição coloca em primeiro lugar a dignidade da pessoa humana como base da sociedade pela qual nos devemos empenhar.

A dignidade da pessoa humana é o centro da nossa Constituição e ela significa que devemos respeitar e fomentar os direitos fundamentais de todas e cada uma das pessoas.

Todos temos uma ideia de quais são esses direitos e a Constituição (todos deveríamos ter um exemplar dela) explicita-os ao longo de largos artigos logo na sua primeira  parte  (artigos 12.º a 79.º), constituindo aquilo a que se chama o catálogo dos direitos fundamentais.

Não cabe no âmbito deste artigo citar todos esses direitos pois é extensa a sua lista e alguns estão até fora do catálogo. Todos têm importância e fazem falta porque de um modo ou outro garantem a dignidade da pessoa humana.

Centramo-nos aqui no artigo 65.º da CRP que estabelece de uma forma bem clara e feliz  no seu n.º 1: “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.

Alguém porá em causa que a dignidade da pessoa exige uma habitação condigna nos termos referidos no preceito acabado de transcrever? Parece-nos que não. Todos consideramos que é necessária uma habitação adequada para que os cidadãos e sua família tenham a sua dignidade assegurada. É um direito fundamental.

Mas se assim é do que se trata então é de garantir esse direito. Todo o esforço deve ser feito nesse sentido. Está claro que não é tarefa fácil e muito menos de um dia para o outro, porém, deve estar claro também que devem ser utilizados todos os meios adequados para lá chegar. Tem de haver aqui um esforço de solidariedade de todos para resolver o problema das famílias que não têm casa condigna, não se podendo esquecer o esforço que estas também têm de fazer na medida das suas possibilidades. Os direitos implicam deveres.

Acaba de ser publicado um conjunto de leis que têm como finalidade resolver este problema. Este pacote de leis não é perfeito. Uns considerarão que é demasiado atrevido, violando outros direitos fundamentais dos cidadãos, outro dirão que não é suficientemente ousado para conseguir o objectivo pretendido.

Pela nossa parte estamos certos que se pusermos no lugar devido  o direito dos cidadãos a uma habitação condigna muito se avançará no nosso país. É uma responsabilidade que cabe a nós cidadãos, aos municípios e ao Governo.

 (Publicado no Diário do Minho de 4-11-2023)

domingo, 13 de agosto de 2023

Democracia Local e Feira do Artesanato: isto já anda assim?


                Dois jornais  de Vila Nova de Famalicão, na sua edição impressa de 26 de julho de 2023,  publicaram, com largo destaque de primeira página,  o anúncio feito pelo Presidente da Câmara e pelo Vereador da Cultura, em conferência de imprensa realizada no dia 24,  da vinda  à Feira do Artesanato e da Gastronomia (38ª) dos afamados artistas Paulo Gonzo, Áurea e Zé Amaro.  Trata-se de um gasto de mais de 112.000 euros para enriquecer a Feira.

O que os jornais não disseram, nem podiam dizer nessa data,  é que só no dia 27 de julho em reunião de câmara  este gasto foi submetido a reunião de câmara e aprovado. Ou seja, a deliberação da câmara e a opinião dos vereadores, nomeadamente os da oposição, foi apenas uma formalidade. Bem poderiam estes na reunião de câmara exprimir opinião diferente, esgrimir argumentos, pois a “deliberação” já estava tomada e anunciada.

Isto é uma desconsideração das regras democráticas de tal ordem  que deveria motivar vivos protestos dos membros do  órgão colegial câmara e particularmente dos da oposição nessa reunião  e  um claro  voto contra. Um voto contra, independentemente do conteúdo da deliberação, pelo procedimento seguido, pois não se tratam assim os vereadores.   Outra solução seria sair da reunião na ocasião da votação.

Mas, vejamos também o conteúdo. Gastar mais de 112.000 euros  com estes artistas é desviar dinheiro que deveria ser utilizado para valorizar o artesanato e a gastronomia locais para   fins que não são os próprios de uma feira deste tipo.

Muito há a fazer em favor do artesanato e da gastronomia famalicenses. Não está feita uma história do estado do nosso artesanato e  gastronomia e todos sabemos que ela é rica, mas corre riscos, em muitos domínios. Não se tem cuidado do apoio a actividades em vias de extinção ou a sofrer sérios problemas como, por exemplo, a produção de mel. Não se tem recuperado e valorizado a doçaria e bem nos lembramos, também a título de exemplo, da qualidade dos  doces brancos e amarelos, dos “charutos”e  das “paciências”. E as broas de milho que se faziam (ainda fazem?) nas casas de lavoura e não só? E os moinhos e os moleiros ? Com muito menos de 100.000 euros tanta coisa se poderia fazer.

Em vez disso, a câmara entendeu aprovar por unanimidade(!) dos seus 11 vereadores um orçamento de 370.000 euros para a 38ª Feira organizada pelo município, mais 100.000  do que no ano passado.

Isto revela bem a visão  política  que subjaz  a esta e certamente a outras  feiras do artesanato e da gastronomia que percorrem o país. Não se trata de apoiar fortemente o artesanato e a gastronomia locais, dando a devida importância ao que de melhor há nos concelhos em causa,  quer no que  é tradição, quer no que é novo, não! O que interessa é que a Feira seja falada e badalada e se diga que vieram largas  centenas de milhar de visitantes, muitos deles contados várias vezes. É o espectáculo e com ele a publicidade (pré-eleitoral) que está primeiro.

(Publicado no Diário do Minho de 11.8.2023 - texto revisto)